“Rimbaud” - Yves Bonnefoy, Cotovia (2004)
Nunca fui fanático de biografias mas esta conquistou-me. Bonnefoy alia a inteligência à sensibilidade, a intuição à lucidez, e isto é raro como o rapaz de olhos azuis que escreveu tudo até ao fim da infância, marcada pelo “atentado metafísico” que sofreu através da mãe, que lhe suscita a frase: “A Senhora está demasiado a prumo na planície.” Mas talvez nunca tenha conseguido libertar-se dela, nem de Cristo, “o eterno roubador de energias.” O amor não lhe calha bem, é um inválido do coração, mas nunca renuncia ao desejo. Não encontra a vida verdadeira (isto é lá coisa que se encontre?) e acaba paralisado numa cama, de regresso à esfera materna, pronto a morrer no açougue onde o canibalizamos ainda um pouco mais.
Um livro de micro-ficção, um “não-género” que dá os primeiros passos em Portugal. Como escrevi num artigo recente para uma revista, “o que mais me atrai na micro-ficção é a sua extrema aptidão para a promiscuidade. A micro-ficção não é um género literário, é a riqueza da impossibilidade de o ser. Confunde os géneros e deixa-nos (bem) perdidos no caminho para qualquer definição.” Rui Manuel Amaral, cujos textos conhecíamos do blog “
dias felizes”, também participa na “Primeira Antologia de Micro-ficção Portuguesa” (Exodus, 2008), que organizei. Em “Caravana” dá-nos textos como este:
“O meteorologista”
Quando o sol tem dificuldades de natureza interna e não consegue evacuar as matérias redundantes, enfia um meteorologista no cu. (Infelizmente não sou poeta e por isso não sei dizer isto de uma maneira mais bela e justa.) Pois bem, só depois de o astro-rei se sentir aliviado das desordens e angústias do corpo, as previsões voltam a bater certo.
São assuntos de que a ciência evita falar.
1. “Estórias Domésticas” é uma casa-fialho, antítese da casa-televisão que aparece na capa, metáfora inversa e desligada porque vinda do futuro, como um ovni ou aquela pedra negra do filme do Kubrick que tanto perturba os macacos.
2. A casa-fialho é uma casa-corpo, isto é, uma casa-macaco, o mais longínqua possível dos seres que nos visitam e se deixam entrever nas alucinações motivadas por insuficiência alcoólica. Fialho é fialho e não gosta de cyborgs, a menos que se chamem, por exemplo, moura ou guerreiro ou quitéria.
3. Existir é representar mais uma vez a corrupção do corpo, castigá-lo até ao esquecimento. Esquecimento é uma palavra-órgão do corpo-fialho e daí a insónia, porque a insónia resulta do terror do sono onde não haja mais nada para esquecer. Não haver nada para esquecer é igual a perder o corpo. É como não haver mais álcool pra beber ou cigarros pra fumar, quase tão mau como, por exemplo, ter uma obra ou conquistar a santidade.
4. A salvação – essa puta – é tornarmo-nos, pela primeira vez na nossa epopeia azul, mortais. O corpo-fialho não quer ser Travolta, quer ser um “Travolta qualquer” (p 86), esse mesmo que diria “cozi-me por dentro” (p 25), “cortar-me todo” (p 35), “até desfazer retinas” (p 44) ou “estive perto de me afogar” (p 34); Travolta, como um verdadeiro herói, ter-se-ia afogado.
5. Claro que o autor-fialho depois (de fechar o livro) liga a televisão. Faz dieta durante alguns minutos, respira fundo três vezes, preocupa-se com não desiludir o editor. Sabendo que as estórias domésticas são apenas quase verdadeiras, voltamos a lê-las mais um ror de vezes.
“A Resistência dos Materiais” - Rui Costa, Exodus (2008)É o romance/trance que publiquei no início de 2008. Sobre ele disse Henrique Fialho isto: “A Resistência dos Materiais - romance alegórico para ser lido como um longo poema em prosa, escrito num ritmo que nunca entedia a leitura e desafia constantemente a imaginação do leitor, revelador de uma capacidade narrativa que, pretendendo fugir à banalidade, nunca resvala num hermetismo infundamentado. O grau de dificuldade deste romance é proporcional à inércia do leitor, ao pouco empenho que possa este revelar na fruição de uma história contada como um rastro que se vai deixando num matagal de metáforas extraordinárias. Há uma cidade, e na cidade decorre uma investigação científica sobre a propriedade das sombras. Os frutos dessa investigação terão consequências inimagináveis ao nível do domínio e da capacidade de influenciar os comportamentos humanos, pelo que importa manter o maior sigilo acerca das conclusões entretanto alcançadas. O que teremos, então, é uma metaforização das relações de poder estabelecidas, numa qualquer sociedade, entre os diversos agentes envolvidos numa investigação, na descoberta da verdade, na ânsia do poder. Desde logo, a negra Rafaela, filha do Comissário das Novas Descobertas, onde todas as sombras serão depositadas; o Escritor, aquele cuja função é roubar as sombras dos vivos; Maria, a mulher sem sombra que pode penetrar nas sombras dos outros, a quem cabe roubar as sombras dos mortos; os Donos, modo subjectivo de chamar à liça os homens que detêm o poder, sejam eles políticos, forças económicas, etc…” (in http://antologiadoesquecimento-leituras.blogspot.com/2008/05/resistncia-dos-materiais.html )
Rui Costa nasceu no Porto em 1972. Estudou Direito em Coimbra e foi advogado durante seis anos, em Lisboa e Londres. Concluiu um mestrado em Saúde Pública em Leeds, Inglaterra. Actualmente é professor na Escola Superior de Saúde do Vale do Ave.
Em 2005 publicou “A Nuvem Prateada das Pessoas Graves” (Quasi Edições), livro vencedor do Prémio de Poesia Daniel Faria. Em 2007 recebeu, pelo romance “A Resistência dos Materiais”, o Prémio Albufeira de Literatura. Participou em diversas publicações, nomeadamente: “Poema Poema -Antologia de Poesia Portuguesa Actual” (U.Stabile, Huelva, 2006); “A Sophia – Homenagem a Sophia de Mello Breyner Andresen” (Caminho, 2007); “Um Poema para Fiama” (Labirinto, 2007); “Sulscrito – Revista de Literatura” (Arca, 2007).